Re-edição do artigo publicado em 2005.
O Serviço de Inteligência brasileiro sempre foi concebido como vinculado à Presidência da República e/ou a Casa Militar do Governo Federal. Tal posicionamento raramente passou por discussão e ao longo do tempo não se refletiu se este era o lugar mais eficaz. Isso se explica porque a estruturação da Inteligência brasileira adotou o modelo norte-americano com ligação direta com o Presidente da República, embora sua organização interna, altamente centralizada, nos traga à lembrança os modelos francês (DGSE) e canadense (CSIS).
Marcado por um passado opressor, enfrenta um paradoxo quando se analisa o seu lugar na estrutura do Estado neste momento democrático do país. A direta subordinação à Presidência e à Casa Militar, leva-o à uma ação doméstica, o que viola à privacidade e a consideração aos direitos individuais, característicos de uma sociedade democrática.
O papel adequado a um serviço desta natureza diz respeito à garantia da segurança do país perante ações externas, bem como visa obter informações para abastecer a formulação de análises sobre a conjuntura internacional em suas expressões política, econômica, social, científica e tecnológica, dentre outras, sem se voltar para ações contra os próprios cidadãos do país. Esse papel, cabe ressaltar, é bem definido nas democracias estabelecidas que, de forma alguma permitem a intrusão de um órgão de Inteligência na vida particular de seus cidadãos. Logo, se a real atividade da Inteligência é a sua atuação externa e quando age internamente o faz somente quando objetiva trazer esclarecimentos sobre as ações estrangeiras no território nacional, ou dar suporte às ações do Estado que precisam ser reforçadas internamente antes de serem executadas externamente, percebe-se que o posicionamento de subordinação do Serviço de Inteligência no Brasil está equivocado.
No nosso caso, o Ministério das Relações Exteriores – Itamaraty – é um dos ministérios de maior prestígio doméstico e externo. Ademais, sendo dotado de uma certa autonomia para suas formulações estratégicas, bem como para execução de seus serviços, tem condições de pensar e trabalhar de forma mais ampla as questões que dizem respeito a uma adequada função para um Serviço de Inteligência.
Em uma democracia sólida, com modelo presidencialista, o mais eficaz para garantir não só a democracia, mas o engrandecimento e legitimidade de uma instituição de Informações, seria ter as atividades de inteligência coordenadas por um órgão diretamente ligado a esse ministério. Além de estar mais adequado ao modelo de sistema política, fortaleceria o posicionamento do País no sistema internacional.
No cenário atual, nota-se um problema de articulação e de coerência na política externa brasileira como, por exemplo, o apoio informal aos atos praticados pela Venezuela enquanto, ao mesmo tempo, se elabora e executa uma campanha de ingresso no Conselho de Segurança da ONU. Adotando-se uma perspectiva de análise que parta da identificação da configuração de forças da política internacional e busque enquadrar corretamente as prioridades do país, percebemos que esses dois objetivos lançados para a comunidade mundial são contraditórios, além de poderem estar equivocados, ambos, ou ao menos um deles.
Um correto trabalho de Inteligência, estruturado e coordenado por um órgão no Ministério das Relações Exteriores, mostraria não apenas essas contradições, mas, principalmente, qual deve ser a lógica de uma política externa eficiente, com objetivos claros e passos eficazes para alcançá-los. O preparo histórico, a relativa autonomia e a estrutura da Abin serviriam para coletar informações e formular análises que nem sempre estão ao alcance de diplomatas brasileiros, colaborando de forma intensa no trabalho do Itamaraty, bem como na formulação da nossa política externa. Essa união fortaleceria a importância e a atuação das duas instituições e, ao mesmo tempo, aliviaria o Governo das freqüentes acusações da falta de foco da Agência. Além disso, teríamos dois ganhos táticos: seria amenizado o passado de atuação doméstica do nosso serviço de informações e a democracia brasileira sairia fortalecida.
É possível afirmar que esse vínculo permitiria solucionar o problema que arrasta todos os defeitos originados da forma como ele foi concebido, criado e organizado, ao longo da história, independente do modelo no qual se baseou: sempre existiu para servir ao governo, ao invés de servir ao Estado.
É uma diferença que não carece de sutilezas, pois, pelo fato de os órgãos, os principais dirigentes e funcionários estarem ligados à Presidência da República, o foco de interesses sempre se concentrou nas questões sociais, ideológicas e político-partidárias, tornando a instituição um instrumento para garantir a estabilidade de governos e não para propiciar o conjunto de informações e análises que dariam aos governantes parâmetros para o nortear o comportamento do Estado em questões que incidem na sua sobrevivência e, por isso, exigem um posicionamento preciso e coerente perante à comunidade internacional.
É esse o defeito que precisa ser corrigido, pois uma interpretação adequada acerca do que deve fazer um serviço de Inteligência e a identificação correta de a quem deve servir, bem como a quem deve ser subordinado estruturalmente, permitirá compreender o tipo de profissional que deve compor os seus quadros e o produto que se espera. Talvez, então, possamos ter líderes que façam políticas externas mais coerentes e cidadãos mais conscientes das verdadeiras necessidades do Estado, bem como das adequadas exigências da sociedade e do correto sentido de sua cidadania.